Graça Milanez Publisher do OBemdito

“A música é meu combustível; tô inteirinho!”, diz professor Washington, aos 94 anos

O baiano se orgulha da biografia: foi o primeiro barbeiro e o primeiro professor de violão de Umuarama; a tesoura perdeu o embate

Fotos: Graça Milanez/OBemdito
“A música é meu combustível; tô inteirinho!”, diz professor Washington, aos 94 anos
Graça Milanez - OBemdito
Publicado em 19 de agosto de 2023 às 13h21 - Modificado em 21 de maio de 2025 às 03h01

Com o inabalável ar de bom moço. Assim o músico Washington Alves da Silva, 94 anos, recebeu a reportagem de OBemdito, num final de tarde. Foi uma visita surpresa; nosso intuito era saber como está o homem que fez da música seu principal combustível.

“Estou muito bem!”, afirma ao nos cumprimentar, acentuando o ‘muito’. “Tô inteirinho! Sou um cara fooorte!”, acrescentou, com a simpatia de sempre e lucidez impressionante. Lembra nomes, datas e fatos de sua trajetória de vida, detalhe por detalhe.

Natural da Bahia, quem o conhece – e muita gente de Umuarama o conhece – sabe: Washington transborda orgulho quando diz que foi o primeiro barbeiro e também o primeiro professor de violão de Umuarama.

“Mas sempre gostei mais do violão do que da tesoura”, avisa, no início da prosa e já abraçado ao violão, dedilhando as cordas com sua unha do dedão direito comprida e bem cuidada, seu capricho particular. Tocava a clássica ‘Carinhoso’.

Rápido como um malabarista, joga o violão nas costas e começa a tocar o Hino Nacional. “Tá vendo? Toco assim, também! Ninguém faz isso por aqui! Toco várias músicas desse jeito”, garante, cheio de convicção.

Vaidoso, vestia camisa social e calças brancas, demonstrando que continua fã do estilo adotado por sambistas da velha guarda [como Moreira da Silva]. No entanto, nunca se considerou um sambista.

“Sou um apaixonado pelos vários e diferentes ritmos, incluindo os melancólicos, que embalaram os anos de 1940 até 1960/70”.

Washington Alves da Silva, aos 94 anos: primeiro contato com a música aconteceu na infância

Quatro filhos [dois falecidos], cinco netos, sete bisnetos, viúvo, Washington mora sozinho; a limpeza e a organização da casa chamaram a nossa atenção. Mérito da filha Célia, que mora ao lado. Digamos que ele também tenha sua cota nisso: minutos antes da nossa chegada, tinha acabado de varrer a calçada. “Isso me distrai!”, justifica.

Descarta a proposta de mudar para a casa da filha, sua cuidadora. “Estou bem aqui: durante o dia sempre tem gente entrando e saindo; à noite ‘fica’ eu e Deus”, exclama, rindo.

Aliás, o riso discreto e curto encerra as frases pronunciadas. “Se quero chegar aos 100 anos? Só se for com saúde; se não, quero que Ele me leve”. E ri.

Estrada de ferro

O pai era músico; a mãe, cantora. Washington cresceu admirando o talento deles e logo cedo percebeu que carregava nas veias a vontade de aprender a tocar. “A família não incentivava”, queixa-se: “Meu pai dizia que eu nunca ia aprender e não me ensinava; se enganou!”.

“Aos 12 anos, trabalhei na construção de uma estrada de ferro; com meu primeiro salário comprei um violão e não deu três meses já estava tocando… aprendi sozinho”. Anos depois, resolveu deixar o estado natal e vir para o Paraná. “Eu pensei: ‘vou-me embora, quero crescer’; e vim”.

Washington Alves da Silva e seu inseparável violão; por ele deixou de ser pedreiro e barbeiro

Pau de arara

Ele chegou em Umuarama quando tudo começava por aqui; o caminho foi longo e sofrido, porém diz que valeu o sacrifício. É que veio da Bahia num caminhão pau de arara [como se sabe, era um tipo de transporte precário e nada confortável].

“Cheguei aqui no início dos anos de 1950; sou pioneiro de três cidades: São João do Caiuá, Cianorte e Umuarama”, informa, em tom nostálgico.

Pedreiro, foi a primeira profissão nas terras vermelhas; trabalhou um tempo em Maringá, depois em Cianorte, onde ajudou a construir o escritório da Companhia Melhoramentos Norte do Paraná.

Barbeiro, já contava com alguma prática, mas foi em Umuarama que montou seu primeiro salão, em 1955. Um amigo o chamou, alegando que aqui não tinha barbeiro.

“Gostei do convite, só que eu não tinha dinheiro pra comprar a cadeira de barbeiro; expliquei a situação… O que aconteceu? Ele me emprestou o dinheiro!”

Quando abandou essa profissão, Washington vendeu as cadeiras. Com o dinheiro de uma delas, comprou o terreno e construiu [ele mesmo] a casa onde mora até hoje. “Veja só: o dinheiro da venda de uma só cadeira deu pra comprar esse terreno! Incrível, né?!”

Washington no quintal da casa, que ele varre todos os dias: “Isso me distrai”, diz

Clubes e boates

Cantor e tocador que era, não demorou para atuar profissionalmente no meio artístico. Montou uma banda, a ‘Regional Cultura’, e com ela animou muitos bailes Umuarama afora.

“Toquei na inauguração do Country Club, tocava no Cine Umuarama quando a cidade recebia artistas famosos, tocava em programa de rádio, tocava nas boates…Não era fraco, não!”, argumenta, expressando saudosismo.

Por boate, refere-se às casas de shows da zona do meretrício da época, onde o cachê era mais polpudo. “Ganhava o dobro lá; e era valorizado! Foi a experiência que me revelou como cantor! Fiquei famoso!”.

Em tempo: foi também a que o consagrou como um dos boêmios mais autênticos de Umuarama. Impossível omitir essa particularidade de Washington.

Washington [à direita] e sua banda ‘Regional Cultura’: famosa, animava bailes em toda a região

Ensinar, sonho maior

Pessoa sensível, generosa e convicta de suas habilidades, viu que podia dividir o que sabia e se enveredou num outro ramo da arte: a de ensinar. Três gerações receberam suas lições.

“Ensinei o pai, depois veio o filho, mais adiante os netos… Tive mais de mil alunos, que hoje estão em várias cidades do mundo mostrando seus talentos”. Na verdade, tem alunos, porque ainda dá aula de violão. “Não parei, não… Tenho quatro alunos; gosto do que faço!”.

Cidadão Honorário

Entre uma canção e outra, a prosa continuava, repleta de autoelogios. Washington gaba-se o tempo todo, mas sem ser arrogante; sempre no mesmo timbre de voz, ele simplesmente exalta suas conquistas. E ri.

“Com 11 anos eu já pegava no pesado! Era corajoso, hein! Em Umuarama fiz muita coisa boa… só coisa boa!”. Tirando de um estojo esmerado, exibe seu diploma de ‘Cidadão Honorário de Umuarama’. “Recebi no ano passado! Não é qualquer baiano que ganha um presente desse, não, tá?!”. E ri, com os olhos brilhando.

Neiva e Candinho

Outro capítulo de sua história que sublinha e negrita é o que o colocou na vida de duas personalidades importantes de Umuarama: Neiva e Cândido Garcia, fundadores da Universidade Paranaense.

Era praxe: o casal cantava nas muitas festas que promovia [corporativa ou familiar]; por afinidade e afinação, Washington era o músico que os acompanhava. “Eles sempre me chamavam! Desde a primeira vez que toquei com eles, não parei mais! Eles faziam questão da minha presença nas cantorias.”

Namoro fugaz

Há 11 anos viúvo, Washington diz que não se interessou por um segundo casamento. Só que o cupido deu uma rondada, sim. Ele conta: “Uma aluna, viúva, queria namorar comigo, mas…”.

Pausa pra pensar se continuaria a frase… Todo faceiro, completou: “Minha família não deixou; ciúme! Não sei por que… ela não tinha ‘cara’ de interesseira… é rica, o marido dela morreu e deixou uma fazenda pra ela”.

Até a aconselhou a investir em lavoura: “Quando ela comentou que queria plantar eucalipto, eu disse: ‘eucalipto, você vai colher daqui muitos anos; planta mandioca, porque daí você vai ter colheita todo ano’. Foi o que fez; na primeira colheita já comprou uma casa… viu só?”.

Rememorando os momentos que passou com ela, disparou mais uma pérola. “Ela queria se casar comigo porque eu sou famoso… ‘Marido rico já tive, agora quero um famoso’, me disse; mas não deu certo”, lamenta o baiano mais arretado de Umuarama.

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