
A cidade onde moradores tomam mais Coca Cola que água e pagam o preço amargo da diabetes
Refrigerante faz parte de rituais religiosos e é usado para finalidades que desafiariam os manuais de consumo


Parece enredo de um roteiro surreal, mas é a realidade de San Cristóbal de las Casas, uma cidade no estado de Chiapas, México. Lá, Coca-Cola não é apenas uma bebida, mas parte da identidade cultural.
E, paradoxalmente, enquanto o consumo passa de dois litros per capita por dia, a água potável se torna artigo de luxo. O resultado? altos índices de diabetes e uma população que transformou o refrigerante em substituto oficial da água.
Chiapas enfrenta uma grave crise hídrica. Mesmo sendo uma das regiões mais úmidas do México, grande parte da população não tem acesso contínuo à água potável, sendo algumas casas abastecidas apenas algumas vezes por semana.
Isso faz com que muitas pessoas acabem recorrendo ao refrigerante: mais acessível, barato e tão facilmente encontrado quanto o ar que se respira.
Esse cenário é alimentado também pela presença da gigantesca fábrica da Coca-Cola na região, que tem permissão para utilizar mais de 1 milhão de litros de água por dia, enquanto os moradores precisam recorrer a caminhões-tanque ou pagar caro por água engarrafada.
“A Coca-Cola paga pouco para explorar nossa água, mas o governo local não consegue nos oferecer o básico”, denuncia um ativista local.


Coca-Cola e a religião: ‘a cura da alma’
Em San Cristóbal, o vínculo com a Coca-Cola vai além da substituição da água. O refrigerante faz parte de rituais religiosos e é usado para finalidades que desafiariam os manuais de consumo.
Na popular “Igreja Coca-Cola” (oficialmente São João Batista), praticantes acreditam que o gás do refrigerante ajuda a expurgar males da alma quando… arrotamos. Isso mesmo.
Até mesmo missas e rituais locais incluíram o refrigerante em seus preparativos. Fiéis carregam garrafas da bebida para curar os doentes ou oferecer às almas de entes queridos como parte dos rituais.
Entre os indígenas Tzotzil, os pais chegam a dar refrigerante aos filhos como “remédio” contra doenças.
O preço amargo da diabetes
Se a Coca Cola é onipresente, os males que vêm com ela também estão. O diabetes afeta quase todas as famílias na região e é a segunda principal causa de morte no estado de Chiapas, onde está San Cristóbal.
“As crianças aqui substituíram a água por refrigerantes. O diabetes, que hoje atinge os adultos, será um fardo ainda maior para os mais jovens”, alerta Vicente Vaqueiros, médico da região.
A dependência da Coca-Cola é tão grande que algumas pessoas chegam a se culpar. “Tenho medo de acabar cega ou sem um membro, como aconteceu com meu pai”, lamenta Maria del Carmen Abadía, moradora local.
Quando a televisão abraça o açúcar
Esse encerramento cultural foi reforçado por décadas de marketing. Desde os anos 1960, a Coca-Cola investiu pesado em campanhas voltadas às comunidades indígenas, produzindo propagandas no idioma Tzotzil e frequentemente estampando modelos em trajes tradicionais distribuídos nas regiões mais isoladas.
Embora as propagandas tenham cessado, as cicatrizes deixadas continuam bem visíveis — e de forma literal na saúde da população.
Quase uma religião
San Cristóbal é uma cidade onde água representa um privilégio, e uma bebida açucarada virou quase uma religião. Enquanto os moradores lutam contra a escassez hídrica e as doenças provocadas pelo consumo excessivo de açúcar, segue a batalha entre justiça social, compromissos corporativos e governo.
Por ora, o que resta aos habitantes é esperar que algum dia a água volte a fluir em suas torneiras – e não apenas nas fábricas gigantes que literalmente engarrafam sua vida.
(Fontes: The New York Times, Secretaria de la Salud del México, El Pais e TV Azteca)