Graça Milanez Publisher do OBemdito

“Não tem ‘meu’; é ‘nosso’ e sempre será”, diz Dona Maria da Sopa, prestes a completar 90 anos

Símbolo do acolhimento, a filantropa segue sua rotina compreendida como uma missão

Firme e forte: Prestes a completar 90 anos, Dona Maria da Sopa mostra-se disposta e compenetrada na missão de ajudar o próximo - Fotos: Danilo Martins/OBemdito
“Não tem ‘meu’; é ‘nosso’ e sempre será”, diz Dona Maria da Sopa, prestes a completar 90 anos
Graça Milanez - OBemdito
Publicado em 18 de janeiro de 2025 às 17h00 - Modificado em 19 de maio de 2025 às 17h47

No coração do Parque Industrial, um dos bairros mais vulneráveis de Umuarama, a solidariedade tem um nome e um rosto: Maria do Carmo da Silva ou… Dona Maria da Sopa. Mãe de dez filhos [seis biológicos e quatro adotivos], e prestes a completar 90 anos [em 5 de abril], ela mantém a rotina de aproximadamente três décadas no voluntariado.

Abnegada e generosa, e uma lucidez de fazer inveja, ainda coordena o projeto social que iniciou em 1997, com o objetivo de servir refeições para pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza; eram desempregados, muitos viciados em álcool e drogas, homens e mulheres discriminados, desamparados, quase tudo ao mesmo tempo.

“Uma situação muito triste, que me comovia e que me fez tomar a atitude de servir comida para quem precisasse”, relembra. Sua família foi uma das primeiras moradoras do Parque Industrial, construído pela prefeitura no início dos anos de 1990.

“Era um tempo de muita violência! Brigas, drogas, vingança, mortes, pessoas bêbadas caídas nas sarjetas, crianças com fome, desmaiando na escola… Fome, muita fome… O que eu tinha, eu repartia… Não tinha ‘meu’, era ‘todos’… As pessoas sabiam que podiam contar com meu apoio e passaram a me procurar; batiam à minha porta e eu atendia a todos, sem julgar.”

Não só recebia, como também ia à casa dos necessitados. “Um dia soube que uma mulher tinha acabado de ter nenê e estava sem o que comer em casa… Fui levar comida pra ela, quando vi que não tinha também nem uma fralda para o nenê… Voltei pra casa, peguei um lençol, cortei e fiz umas fraldas e levei… Eu só tinha dois lençóis… E assim seguia a vida, atendendo casos e mais casos desse tipo… Meu marido concordava: era um homem bom!”, relata.

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Dona Maria da Sopa preside a entidade que fundou nos anos de 1990, oficializada em 2003

“Comecei a servir refeições porque se doasse o alimento cru, a maioria trocava por bebida, por droga… Daí pensei: ‘Vou dar a comida pronta, porque quem tem fome come, não troca’… Foi o que deu certo; eu levava uma vida simples, não tinha dinheiro para resolver todas as urgências, só a crença de que Deus daria a solução.”

Compenetrada nas recordações, diz lembrar muito bem, também, da primeira doação: “Uma bandeja de ovos e cinco quilos de arroz… Isso aconteceu um ano depois que comecei esse trabalho… A partir daí, toda semana chegavam doações… Era um alívio!”.

Nesse tempo, pelo menos 50 crianças iam à casa de Dona Maria, diariamente, para comer sopa [à época não existia creche e a escola não servia merenda]. Aos poucos, foram chegando também os pais. “Era muita gente! Eu não tinha muitos pratos, nem panelas grandes para cozinhar, mas ninguém saia sem comer”, enfatiza a filantropa.

Segundo ela, o quadro hoje não é mais deplorável, porém há ainda muita gente precisando de um prato de comida todos os dias. “E é por isso que o trabalho continua com a mesma garra… Hoje servimos umas 700 marmitas por semana”.

Já com os cabelos grisalhos e expressando uma fé que resiste às dificuldades, ela passa o dia na sede da ONG que fundou e que preside – a Associação Vida e Solidariedade, onde chega por volta das 9h e sai às 17h – coordenando os projetos sociais que seguem seus objetivos com mais de cem assistidos.

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Obra reconhecida: Dona Maria da Sopa é Cidadã Honorária de Umuarama; diploma fica exposto em sua sala de trabalho

“Acordo às 6 horas, faço minhas orações, tomo meu banho e venho pra cá… Temos uma cozinheira e uma auxiliar de cozinha, mas eu ainda ajudo a cozinhar, sim; não sei ficar parada”, avisa a líder, que também assume tarefas no computador: é ela que faz a leitura dos códigos de barra das notas fiscais deixadas [doadas] por consumidores nos mercados [e que geram renda extra para a entidade].

Mantendo boa postura e voz mansa, garante estar muito bem de saúde: “Tenho pressão alta, mas me cuido… Só tomo dois remedinhos… Minha vida sempre foi muito boa! Ajudar as pessoas faz bem! Sou grata por essa missão que Deus colocou nas minhas mãos”.

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Mãos que acolhem: Dona Maria da Sopa vê seus feitos como uma missão dada por Deus

Esforço reconhecido

Reconhecendo todo esse esforço, em 2000 a prefeitura construiu uma cozinha grande e equipada o suficiente para atender a demanda do projeto social, em um salão comunitário do bairro. “Foi um passo importante para a continuidade dos trabalhos”, afirma Dona Maria.

E ela já não estava mais sozinha, bancando quase tudo com sua aposentadoria. O esforço solitário foi ganhando admiradores. A honestidade e a seriedade com que Dona Maria conduzia sua missão chamaram atenção, e logo vieram mais e mais doações e também pessoas dispostas a ajudar a cozinhar, a servir, a lavar pratos e talheres. “Logo nos tornamos uma grande família”, diz, em tom de agradecimento.

Dona Maria também sempre contou com apoio de padres; de entidades filantrópicas ligadas ou não a igrejas; de clubes de serviço e de muitos anônimos. “A todos tenho um carinho especial”, confirma a católica, fiel da comunidade Canção Nova.

A formalização do projeto em 2003 foi outro grande passo, o que originou a ONG Vida e Solidariedade; nesse mesmo ano, foi inaugurada a nova sede [a atual], um salão de 700 m2, num terreno de 5 mil m2, com espaços para atividades que envolvem adultos e crianças em cursos de capacitação, recreação, artesanato e esporte, do Industrial e do bairro vizinho, o Arco Íris.

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Lúcida e ativa: no computador, ela se encarrega de escanear as notas fiscais doadas em mercados e que geram renda extra à entidade

A ONG fez com que o impacto do trabalho de Dona Maria e de suas colaboradoras fosse além do prato de comida. “Passamos a repartir também nossa coragem para que essas pessoas enfrentem as dificuldades com esperança, para que possam ter um futuro melhor”, reforça a humanista, que é a prova de que mesmo nas condições mais difíceis, a solidariedade pode florescer, inspirar, contagiar e salvar vidas.

Voltando o olhar para o passado, Dona Maria reflete sobre esses tantos anos de dedicação ao projeto: “Não faço isso para ganhar vantagem… Faço porque acredito que a gente só muda o mundo quando ajuda quem está ao nosso lado… Sempre soube que não poderia resolver todos os problemas que vinham até mim, mas se pudesse ajudar alguém a passar um dia melhor, para mim já valia a pena”.

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Lúcida e ativa: no computador, ela se encarrega de escanear as notas fiscais doadas em mercados e que geram renda extra à entidade

Pautada na fé

Dona Maria da Sopa nasceu em Angelita, um patrimônio que pertencia ao município de Leopoldina/MG, em 1935. Com 8 anos de idade, mudou-se para o Paraná. Sua família, que “veio em busca de uma vida melhor”, instalou-se em Bandeirantes; e lá ela morou até se casar, em 1958 [com 22 anos].

Um ano depois, ela, o marido e uma filha recém-nascida aportaram por aqui: começaram a vida no distrito de Lovat, trabalhando em roças de café e algodão, antes de se mudarem para o Parque Industrial, de Umuarama.

Entrou na escola com 9 anos; estudou até o 3º ano. A maior parte da vida trabalhou na roça: começou aos 10 anos, deixou aos 50. “Nesse período, carpi, plantei, colhi, rocei, fiz de tudo… Só não derrubei mato… Meus filhos foram criados praticamente debaixo de pés de café, mas, graças a Deus, se tornaram pessoas boas, ‘trabalhadeiras’… Tenho muito orgulho de todos!”

Desistiu da lida no campo, mas não largou a labuta: tornou-se sacoleira; vendia roupas para somar renda à aposentadoria. “Fui sacoleira de uma loja da cidade por dez anos; eu vendia tudo muito rápido”, orgulha-se a guerreira, que em 2017 foi contemplada com título de Cidadã Honorária de Umuarama.

Ficou viúva em 1996. Tem 19 netos e 23 bisnetos. E, possivelmente, um trineto não demora a chegar, já que uma de suas bisnetas casou-se recentemente. “Minha família é grande; se a gente resolver se juntar, digamos, para uma festa, serão mais de 200 convidados”.

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Pautada na fé, Dona Maria da Sopa trabalha no computador acompanhada pela Santinha, de quem é devota

Doações são bem-vindas

Como toda entidade assistencial, para continuar sua missão a Vida e Solidariedade depende de doações. A verba repassada pela prefeitura [cerca de R$ 10 mil] cobre as despesas de funcionamento [água, luz, telefone, limpeza] e a folha de pagamento dos empregados [assistente social, administrador, entre outros contratados por exigência da lei].

“Não sobra para comprar alimentos”, avisa Dona Maria, denotando um certo desalento. “Por isso continuamos contando com a colaboração dos umuaramenses… Nossa sorte é que muita gente atende aos nossos apelos”, comemora.

A quem se dispor, ela também pede doação de roupas e calçados usados para abastecer o bazar da entidade, trabalho paralelo importante para combater o desperdício e promover consumo consciente, além da verba extra que gera.

== Para doar e saber mais sobre os projetos da ONG Vida e Solidariedade ligue 44 3639-3688.

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