
MPF vai à justiça contra norma sobre uso de bloqueadores hormonais em menores trans
O texto do Conselho Federal de Medicina proíbe médicos de prescrever bloqueadores hormonais para tratar incongruência ou disforia de gênero em crianças e adolescentes


O Ministério Público Federal (MPF) no Acre ingressou com uma ação na Justiça Federal pedindo a suspensão da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que impõe restrições ao tratamento de crianças e adolescentes trans. O procurador regional dos Direitos do Cidadão em Rio Branco, Lucas Costa Almeida Dias, propôs a medida judicial e também solicitou multa de R$ 3 milhões ao CFM por danos morais coletivos.
Segundo o procurador, “não se aceita conciliação em razão da natureza dos direitos defendidos e da postura adotada pelo Conselho na condução do inquérito civil”. A medida judicial é uma resposta direta à resolução publicada em 16 de abril no Diário Oficial da União. Esta revisa os critérios éticos e técnicos para o atendimento de pessoas com incongruência e disforia de gênero.
O conteúdo da resolução
Na resolução, o CFM diferencia incongruência de gênero — descrita como a discordância persistente entre o gênero vivido por uma pessoa e o sexo atribuído ao nascimento — da disforia de gênero, que é definida como o sofrimento decorrente dessa incongruência.
Restrição ao uso de bloqueadores hormonais
O texto proíbe médicos de prescrever bloqueadores hormonais para tratar incongruência ou disforia de gênero em crianças e adolescentes. A exceção se dá apenas em situações reconhecidas pela literatura médica, como puberdade precoce ou outras doenças endócrinas, nas quais o uso dos bloqueadores é cientificamente respaldado.
Terapia hormonal cruzada só a partir dos 18 anos
Apenas pessoas maiores de 18 anos poderão realizar a terapia hormonal cruzada, que consiste na administração de hormônios para induzir características sexuais secundárias condizentes com a identidade de gênero.
Para iniciar esse tratamento, o paciente deverá:
- Primeiramente passar por avaliação médica, com acompanhamento psiquiátrico e endocrinológico durante, no mínimo, um ano;
- em seguida, realizar exames de avaliação cardiovascular e metabólica com parecer favorável;
- por fim, não apresentar doenças psiquiátricas graves além da disforia de gênero, ou qualquer outra condição que contraindique o uso da terapia hormonal.
Cirurgias de redesignação: novas faixas etárias
Outro ponto da resolução refere-se às cirurgias de redesignação de gênero. O texto determina que as pessoas só poderão realizar o procedimento após completarem 18 anos e, nos casos que envolvam potencial efeito esterilizador, apenas após os 21 anos. Além disso, é obrigatório o acompanhamento prévio de, pelo menos, um ano por equipe médica especializada.
As clínicas que realizam tais procedimentos deverão manter cadastro dos pacientes, assim como, disponibilizar essas informações aos respectivos conselhos regionais de medicina.
Destransição e acolhimento médico
A resolução também estabelece diretrizes para casos de arrependimento ou destransição. Nessas situações, os médicos devem oferecer acolhimento e suporte ao paciente, com avaliação do impacto físico, emocional e, da mesma forma, eventual encaminhamento a outros especialistas.
Orientação para atendimento clínico preventivo
Pessoas trans que mantêm órgãos biológicos devem procurar o atendimento médico adequado às suas características anatômicas.
“Homens transgêneros que mantenham órgãos biológicos femininos devem ser acompanhados por ginecologista. Mulheres transgêneros com órgãos biológicos masculinos devem ser acompanhadas por urologista”, orienta o documento.
A resolução deixa claro que as novas regras não se aplicam a pessoas que já estejam em tratamento com bloqueadores hormonais ou em uso de terapia hormonal cruzada.
Argumentos do CFM
Durante entrevista coletiva, o presidente do CFM, José Hiran Gallo, destacou que os 28 conselheiros presentes na plenária aprovaram a resolução por unanimidade. “Todos os 28 conselheiros presentes aprovaram essa resolução”, declarou.
Já o ginecologista Rafael Câmara, conselheiro pelo estado do Rio de Janeiro e um dos relatores da medida, justificou as mudanças apontando que o tema está em constante transformação. “É natural que essas resoluções sejam alteradas”, afirmou.
Ele ainda lembrou que, anteriormente, a idade mínima para uso da terapia hormonal era de 16 anos. Para Câmara, não se trata de um procedimento isento de riscos. “Não é algo inócuo”, declarou, citando efeitos adversos como maior propensão a doenças cardiovasculares e hepáticas, inclusive câncer, além de calvície, acne e problemas tromboembólicos.
Referência internacional
Rafael Câmara citou ainda que diversos países têm questionado amplamente, no cenário internacional, o uso de bloqueadores hormonais para suprimir a puberdade. Segundo ele, o Reino Unido aboliu esse tipo de intervenção em 2023. Além disso países como Finlândia, Suécia, Noruega e Dinamarca — reconhecidos por seus sistemas de saúde robustos — também restringiram o uso.
“O uso de hormônios sexuais tem papel importante na formação óssea, crescimento e desenvolvimento sexual. A ausência dessa exposição pode comprometer a densidade óssea, afetar a altura e reduzir a fertilidade”, explicou o conselheiro.
Câmara também chamou atenção para o aumento de relatos de arrependimento desde 2020, o que como resultado, motivou a revisão dos protocolos em diversos países. Ele apontou para um possível sobrediagnóstico de disforia de gênero entre crianças e adolescentes.
“Estudos mostram que, anos atrás, o objetivo era evitar que a criança mantivesse a disforia. Hoje, há uma tendência ao viés de confirmação. Se uma criança de 4 anos diz que é trans, muitos serviços passam a reforçar essa identidade, em vez de questionar ou acompanhar com mais cautela.”
Ação do Ministério Público Federal
Na ação civil pública com pedido de tutela de urgência, o MPF argumenta que a resolução do CFM vai na contramão de diretrizes internacionais de direitos humanos. São citadas recomendações do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, do Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU, assim como do Perito Independente da ONU sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero.
O documento também menciona o chamado “princípio da competência de Gillick”, adotado em países como Austrália e Inglaterra, como parâmetro para decisões médicas envolvendo adolescentes.
Segundo o MPF, a resolução impõe graves restrições à saúde e ao bem-estar da população trans e travesti, sobretudo crianças e adolescentes.
Reações de entidades civis
Na ação civil de 101 páginas, a Associação de Mães pela Liberdade de Minas Gerais e a Associação Nacional de Travestis e Transexuais relataram impactos imediatos da resolução. De acordo com as entidades, a não suspensão imediata dos efeitos da resolução representa risco de prejuízo grave, e até irreparável, à saúde física e emocional das pessoas trans.
(OBemdito com informações Agência Brasil)