
A possibilidade da polícia apreender celular na cena do crime não afasta a observância da cadeia de custódia
Com isso, a Corte Suprema afastou a exigência da chamada “reserva de jurisdição” nesses casos específicos


Na última semana, o Supremo Tribunal Federal decidiu, no julgamento do ARE 1.042.075, que é possível à autoridade policial apreender e acessar um celular deixado ou esquecido na cena do crime, sem necessidade de prévia autorização judicial.
Com isso, a Corte Suprema afastou a exigência da chamada “reserva de jurisdição” nesses casos específicos.
Contudo, é necessário refletir cuidadosamente sobre os desdobramentos práticos dessa decisão, especialmente em razão do punitivismo que permeia o sistema de justiça penal brasileiro.
A interpretação do julgado não pode ser isolada nem simplificada. Pelo contrário, é imprescindível uma leitura sistemática e coerente com a legislação infraconstitucional vigente, bem como com os princípios constitucionais que regem a produção da prova penal.
É exatamente aí que entra a técnica do distinguishing. Embora seja conceitualmente simples, sua aplicação demanda cautela. O STF não autorizou a coleta da prova digital de qualquer forma, tampouco legitimou a inobservância de procedimentos legais.
O que se decidiu foi, tão somente, a desnecessidade de autorização judicial prévia para apreensão e acesso inicial ao celular deixado na cena do crime. Isso, no entanto, não afasta a obrigatoriedade do cumprimento da cadeia de custódia, conforme os artigos 158-A e seguintes do Código de Processo Penal.
Toda tese firmada pelo STF, especialmente quando tem caráter vinculante, deve ser interpretada de forma holística, à luz do ordenamento jurídico como um todo. No caso do ARE 1.042.075, não se está diante de um precedente que dispense a observância de requisitos técnicos essenciais à idoneidade da prova.
Por isso, remeto o leitor ao título deste artigo: a decisão do Supremo não elimina a necessidade de observância da cadeia de custódia. A apreensão pode ser feita sem autorização judicial? Sim. Mas isso não significa que a prova coletada esteja, automaticamente, validada.
O policial que apreende e manuseia um celular deve seguir os procedimentos técnicos e legais exigidos, tais como: reconhecimento, isolamento, fixação, coleta, acondicionamento, transporte, recebimento, processamento, armazenamento e descarte, como preconizado na legislação processual penal (BRASIL, 1941).
Do ponto de vista técnico, aqueles que estudam perícia criminal sabem que o celular deve ser colocado imediatamente em modo avião no momento da apreensão, evitando alterações no conteúdo e protegendo a verossimilhança dos dados armazenados.
O passo a passo do manuseio também precisa estar descrito: quem acessou o aparelho, quais ferramentas foram utilizadas, qual metodologia científica foi aplicada para extração e análise dos dados.
Além disso, é imprescindível o registro do código hash e a inclusão do seu extrato no relatório técnico. Isso porque o hash é um algoritmo que assegura a integridade do documento eletrônico, permitindo a sua auditabilidade. Conforme bem explica fonte oficial:
Sendo “O hash é um algoritmo utilizado para garantir a integridade de um documento eletrônico, de modo que um perito técnico possa comprovar que não houve alteração neste documento desde a época em que este foi transformado.” (BRASIL, 1)
Essa precaução está diretamente relacionada ao princípio da mesmidade e à exigência de integridade da prova, conforme previsto no artigo 158-A do CPP, que determina a obrigação de “manter e documentar a história cronológica do vestígio”. Qualquer alteração mínima no conteúdo altera o código hash, tornando impossível atestar que o documento periciado é o mesmo originalmente apreendido.
Ademais, é preocupante que, em muitos casos, não se mencione qual foi o método científico empregado na extração dos dados, se por meio da ferramenta Cellebrite ou similar, o que levanta sérias dúvidas quanto à fidedignidade da prova. Muitas vezes, a análise parece ter se limitado à impressão de “prints” de conversas em aplicativos, o que é tecnicamente questionável.
Aliás, é exatamente esse o ponto reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça no AgRg no Habeas Corpus nº 828.054/RN, ao assentar que os Prints de WhatsApp obtidos pela polícia em um celular não poderiam ser usados como prova na investigação.
Portanto, é fundamental compreender que o ARE 1.042.075 não afastou a exigência de adoção de método científico adequado para a coleta e o manuseio da prova digital.
O precedente simplesmente autorizou que a apreensão do aparelho deixado na cena do crime seja realizada sem prévia autorização judicial. Daí não decorre a dispensa do rigor probatório exigido para que os elementos digitais possam ser admitidos como prova válida no processo penal.
DIREITO É CIÊNCIA. CIÊNCIA EXIGE MÉTODO. E MÉTODO, QUANDO RESPEITADO, GERA SEGURANÇA, CONFIANÇA E JUSTIÇA. Como diz o Renomado Jurista Aury Lopes Júnior, FORMA É GARANTIA.
REFERÊNCIAS:
BRASIL. Quinta Turma não aceita como provas prints de celular extraídos sem metodologia adequada. Disponível: https://encurtador.com.br/spMgN. Acesso em: 28. Jun. 2025.
BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 28. Jun. 2025.
BRASIL. Celular esquecido em cena do crime pode ser usado como prova, decide STF. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/celular-esquecido-em-cena-do-crime-pode-ser-usado-como-prova-decide-stf/. Acesso em: 28. Jun. 2025.
BRASIL. Procedimentos para obter o código hash. Disponível: https://www.iffarroupilha.edu.br/component/k2/attachments/download/11376/13a9f8d7fd8041db4e8cc61056e13087. Acesso em: 28. Jun. 2025.
____________________________________
Matheus Urgniani é advogado, mestre em Direito, doutorando pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc) e colunista convidado do OBemdito.