Matheus Urgniani Publisher do OBemdito

Entre a memória e a pena: a fragilidade da memória no processo penal

Matheus Urgniani: "No processo penal, é comum que os fatos dependam exclusivamente da memória de vítimas ou testemunhas"

Entre a memória e a pena: a fragilidade da memória no processo penal
Matheus Urgniani - OBemdito
Publicado em 11 de agosto de 2025 às 13h43 - Modificado em 11 de agosto de 2025 às 13h43

O Estado de Direito, em sua essência, vai além da simples existência de normas jurídicas, uma vez que a sua concepção resta estruturada em valores como a limitação do poder estatal, a proteção das liberdades individuais e a garantia de igualdade substancial entre o Estado e o Cidadão.

Essa influência valorativa resta pode ser inferida da sua formação histórica por meio da consolidação do liberalismo europeu, como o rule of law na inglaterra e o e da concepção francesa voltada à centralidade da lei, mas não só a Europa, mas também a doutrina norte-americana que fortaleceu o papel do Judiciário.

Todas essas experiências têm em comum a defesa de um núcleo axiológico centrado nos direitos fundamentais. No Brasil, esse valor se concretizou com a Constituição de 1988, especialmente ao prever o devido processo legal como garantia essencial de justiça.

Nessa busca de sedimentary o valor liberal, é que surge o devido processo legal, embora com raízes formais desde a Magna Carta, ganhou contornos substanciais ao longo da história, sobretudo com a Emenda XIV da Constituição dos EUA, que introduziu a ideia de igualdade material.

No sistema brasileiro, ele é o instrumento pelo qual os valores do Estado de Direito são efetivados no plano jurídico, assegurando que nenhum cidadão será privado de sua liberdade ou bens sem um processo justo, equilibrado e com respeito à dignidade da pessoa humana. Seu valor não está apenas no procedimento, mas na substância da justiça que ele busca realizar.

Dentro desse sistema, a prova testemunhal ocupa papel central. No processo penal, é comum que os fatos dependam exclusivamente da memória de vítimas ou testemunhas. O Código de Processo Penal dedica 45 artigos à produção de provas que de alguma forma haverá inferência da memória, o que demonstra sua importância.

Ocorre que, em que pese há essa importância da memória humana no conhecimento do fato penal no Brasil, por vezes é esquecido pelos operadores do direito que essa é cientificamente reconhecida como falível.

A psicologia e a neurociência demonstram que a memória passa por fases, codificação, armazenamento e recuperação, todas suscetíveis a distorções. Nesta esteira, a memória episódica é a mais acionada em audiências judiciais, a qual poderá ser contaminada por memórias semânticas ou induções externas, comprometendo a fidelidade do relato.

Por isso que, a repetição de depoimentos, como ocorre no Tribunal do Júri, não garante veracidade, pois a memória pode ser alterada a cada tentativa de resgate, o que poderá prejudicar no conhecimento. O senso comum jurídico tende a confiar na estabilidade do relato oral, mas ignora que a lembrança de um evento não equivale a um registro objetivo.

As experiências emocionais, a influência do tempo e os fatores externos moldam a forma como o evento é lembrado e narrado. Por isso, o julgador precisa assumir um compromisso com o conhecimento científico disponível, avaliando com rigor a confiabilidade da prova oral.

Ignorar essas fragilidades constitui um prejuízo epistêmico, pois compromete não apenas o valor probatório da prova, mas a própria estrutura do Estado de Direito. Quando se permite que memórias falhas sirvam como único fundamento para condenações, enfraquece-se a proteção do indivíduo diante do poder punitivo estatal.

Por isso, é urgente repensar a forma como o sistema jurídico brasileiro trata a prova que depende da memória, inserindo-a no conceito de cadeia de custódia, a fim de que se estabeleçam critérios técnicos para avaliar sua integridade e confiabilidade. A preservação da memória como prova exige responsabilidade e consciência de que o erro judicial, nesse campo, é um risco real e irreversível.

Leia também: Lucidez do Ministro Fux x Alexandre de Morais.

CECCONELLO, William Weber; AVILA, Gustavo Noronha de. STEIN, Lilian Milnitsky. A (ir)repetibilidade da provapenal dependente da memória:uma discussão com base napsicologia do testemunho. Disponível em: https://www.uhumanas.uniceub.br/RBPP/article/view/5312/3982. Acesso em: 27. Jul. 2025.

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RAMOS, João Gualberto Garcez. Evolução histórica do princípio do devido processo legal. Disponível em: https://encurtador.com.br/Sli38. Acesso em: 27. Jul. 2025.

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Matheus Henrique de Freitas Urgniani. Colunista convidado do OBemdito. Advogado criminalista. Graduado em Direito pela Universidade Paranaense (UNIPAR) – Umuarama. Membro da Comissão da Advocacia Iniciante da OAB/PR e da Comissão de Direito Criminal da OAB/PR. Doutorando em direto pela UNOESC. Mestre em Direito processual e Cidadania pela Unipar e Pós-Graduado em Perícia Criminal e Judicial pela Gran Faculdade. Pós-Graduando em Direito Penal Econômico pela Galácia Educação. Além de ser Procurador Jurídico da Câmara Municipal da Cidade de Xambrê-Pr.

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