
Rotina em Icaraíma ‘quase’ volta ao normal um mês após o sumiço de quatro homens
Mistério investigado pela polícia ainda impacta o cotidiano da cidade

Apesar de pavimentada, a estrada Raul Barbosa Dias, em Icaraíma (PR), com seus buracos e remendos, não costuma ser gentil com motoristas. Mas é por ela que se chega a um ponto que hoje concentra um dos maiores enigmas policiais do país: o desaparecimento de quatro homens e, dias depois, da família considerada a principal suspeita.
O asfalto irregular conduz até a propriedade abandonada da família Costa Buscariollo, epicentro do caso que abalou o município de pouco mais de 10 mil habitantes. Também leva ao distrito de Vila Rica do Ivaí, onde cerca de 500 moradores viram sua rotina simples de lavoura e pequenos comércios ser atravessada por um mistério sem respostas.
Até 5 de agosto de 2025, a vida na comunidade era preenchida pelo trabalho de cultivo de mandioca, leite, afazeres domésticos e encontros de vizinhança. Hoje, um mês depois do sumiço, a população insiste em seguir em frente, mas carrega a interrogação como um peso constante.
O desaparecimento e um mistério
Naquela terça-feira, desapareceram Alencar Gonçalves de Souza, 36, artesão conhecido pelo talento em construir porteiras, mangueiras e móveis de madeira, e três homens de São Paulo: Robishley Hirnani de Oliveira, 53, Rafael Juliano Marascauti, 43, e Diego Henrique Afonso, 39.
A investigação policial aponta que o grupo teria relação com uma suposta dívida de R$ 250 mil. A linha central do inquérito liga o caso à família Buscariollo, composta por Antônio, o “Tonhão”, 66, e seu filho Paulo Ricardo, 22, ambos com prisão preventiva decretada, mas também desaparecidos.
Pai e filho teriam comprado uma propriedade de Alencar, que não recebeu, e com a ajuda do trio paulista teria procurado os devedores para tentar cobrar a dívida.

A cidade e a sombra
Nos primeiros dias após o sumiço, a tensão foi explosiva. Helicópteros, cães farejadores e sonares varreram rios e matas em busca de vestígios. Com o tempo, as buscas perderam intensidade e a vida, como um rio que contorna pedras, voltou a fluir.
Mas a normalidade agora carrega uma sombra. Falar do assunto com estranhos ou dirigir por estradas vicinais isoladas ainda causa receio. Esse medo, dizem os moradores, diminui quando viaturas da inteligência policial abordam forasteiros, inclusive a própria equipe de reportagem, em patrulhamento ostensivo.
A imagem de Icaraíma como “terra sem lei”, difundida fora da cidade por causa do desaparecimento, não encontra eco entre os moradores. “Aqui tem crime, como em qualquer lugar, mas a vida é de trabalho, não de faroeste”, resume um comerciante, chateado pelo fato. Ele, assim como muitos outros moradores, não gosta de se identificar ao falar sobre o desaparecimento.

O anfitrião e a memória
Vila Rica do Ivaí, distrito vizinho ao sítio dos Buscariollo, guarda lembranças contraditórias da família apontada como suspeita. Antônio, o “Tonhão”, era presença certa nos churrascos da Capela Santa Terezinha do Menino Jesus. Ele ajudava no preparo das carnes em todas as festas religiosas.
Na política, buscou espaço. Na eleição de 2024, concorreu a vereador pelo PSD após a desistência do candidato a prefeito Paulo Pantera. Migrou para a chapa de Juliana Meirinho (PSB), derrotada por Devair Fabris (PL).
“Éramos do mesmo partido”, recorda a vereadora Léia Andrade (União Brasil), que mostra vídeos de brincadeiras com o ex-vizinho, descrito como bonachão e que obteve 242 votos.
A vereadora, que também é técnica em enfermagem e trabalha na unidade de saúde do distrito, também revela que no mesmo dia que desapareceu com a família, “Tonhão” foi ao posto de saúde buscar um exame médico de sua esposa.

O pesqueiro: do ápice ao completo abandono
A memória mais marcante, no entanto, vem do restaurante e pesque-pague da família, famoso por sua comida e pelo atendimento, aspectos destacados por todos ouvidos pela reportagem. “Minha esposa tem deficiência e ‘Tonhão’ fazia questão de abrir a porta do carro e ampará-la até a mesa”, lembra o morador Deusdide Vieira da Silva, 66 anos.
Hoje, a propriedade onde fica o pesqueiro está congelada no tempo. Pratos sujos na pia, roupas espalhadas na casa e ainda penduradas no varal, uma rede estendida no quintal. A cena, inalterada, contrasta com as lembranças de domingos em família e a boa comida servida no empreendimento, que perdeu vigor após a estiagem de 2023, quando seus tanques secaram.

As vítimas: o artesão e os paulistas
Se de um lado estão os suspeitos, do outro estão os desaparecidos, entre eles Alencar Gonçalves. Morador em Icaraíma, ele é descrito por amigos como um homem de “talento ímpar para a madeira”. Alencar é conhecido como um dos melhores construtores de porteiras da região, com trabalhos realizados em várias propriedades em diferentes localidades.
“É difícil continuar a vida, mas ela não pode parar. Diariamente, a todo instante, eu penso no meu irmão e a tônica da família é: ‘enquanto não temos notícias, ele está vivo’. E assim, a cada minuto, estamos esperando a sua chegada”, afirma Alesandra Gonçalves de Souza, 37 anos, irmã de Alencar.

O percurso do sumiço
Os três paulistas ficaram hospedados no Hotel e Restaurante Harmonia, em Douradina, a 40 km de Icaraíma. A hospedaria tem uma clientela formada por americanos, chineses e japoneses que prestam serviços para o Grupo Gazin. Eles chegaram a brincar com o fato de um dos quartos reservados ser de número 13. Em seguida, tomaram achocolatado e foram dormir.
No dia seguinte, tomaram café, seguiram viagem e passaram para pegar Alencar. Fizeram uma parada na padaria KiPão, em Icaraíma. Alencar tomou apenas uma água e o restante optou por café. Um deles comprou um pote de jurubeba em conserva, lembra o atendente e caixa, Gabriel Machado Manzole, 21 anos.
Coincidência ou não, Paulo, o filho de Tonhão, trabalhou anos antes em um posto de combustíveis em frente à mesma padaria. “Era um rapaz simpático, educado, comum. A irmã dele, morta em um acidente de réveillon na mesma estrada, também trabalhou no local”, lembra um cliente frequente, que conversou com OBemdito.

O silêncio da investigação
A Polícia Civil mantém silêncio sobre o caso que agora está sob sigilo de justiça. A principal linha de investigação aponta para homicídio, mas não descarta outras hipóteses. Celulares, câmeras e registros continuam em análise. Pai e filho Buscariollo seguem foragidos e qualquer informação (verídica) que indique o paradeiro deles pode ser passada para a polícia por meio do telefone 181.
Enquanto isso, a vida em Icaraíma segue. O gado precisa ser ordenhado, a mandioca colhida. Entretanto, a sensação é de que o caso se tornou parte da paisagem. Um fantasma silencioso que todos sabem estar ali, observando, toda vez que um carro estranho diminui a marcha na poeira das estradas da região.


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